quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ouriço e a estrela

Numa floresta vivia um ouriço, bem, tu sabes como eles são: ocupados, resmungões ... Eles geralmente gostam de andar a noite pela floresta fazendo barulho com os seus picos nas folhas.
Mas havia um ouriço que a noite gostava de sonhar ...
Às vezes, ele não fazia isso sozinho, ouriço tinha como amiga, uma estrela ... É bom quando nós temos alguém para compartilhar os nossos sonhos ... Infelizmente eles não se podiam ver muitas vezes, às vezes as nuvens tapavam o céu ... e às vezes a Terra girava para o outro lado tirando lhes a possibilidade de se verem.

- Imagina só! - dizia a estrela – Somos separados pela lei universal de gravidade.
E depois de uma separação, o ouriço dizia:

- Estrelinha, tenho tantas saudades tuas...eu esperei tanto por ti...quase eternidade...
- Oh mas tu sabes o quanto forte conseguem ser as circunstancias... - respondia a estrelinha.
- Sim, eu sei – suspirava o ouriço...e depois eles não diziam mais nada...Ficavam em silêncio a sonharem juntos...
E quando chegava o amanhecer a estrela dizia:
- Eu tenho que ir.
- Eu vou esperar por ti – dizia depressa o ouriço – eu sei que vou ter que esperar muito tempo...mas continuarei a tua espera!...volta depressa...
- Tu sabes que eu vou voltar... - dizia a estrela cada vez a desaparecer mais
- Sim, eu sei... - sorrindo respondia o ouriço para a estrela já quase invisível.

“É tão importante saber que aquele que esperas, voltará...apesar de qualquer lei universal...”

segunda-feira, 19 de maio de 2014

Traur

Eu sei bem essa atmosfera de luto.
Eu sei bem porquê o corvo bate a janela e a vela apaga-se sem haver vento.
Já pressinto o que irá acontecer.
Já conheço todas as lágrimas que caem e todas as músicas fúnebres.
Já não me assusta facada repentina e altamente dolorosa na caixa torácica.
Já não me estranha o choque nem a saudade que não deixa respirar.
Já não ligo as insónias que se seguem com o cheiro de cadáver que demora a desaparecer.
Já vivi isso inúmeras vezes e já não caio, pois a morte ensinou-me que a vida continua...
...até ela chegar.


quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Moedas.

Voltava do trabalho. O sol da primavera e o ar puro cansaram as minhas pernas e decidi sentar me num banco para descansar.
Tirei do bolso um cigarro e sem pressa, fechando os olhos do sol que se estava a pôr, puxei o primeiro fumo.
Desse doce cansaço tirou me um barulho que ouvi atrás do banco. Virei-me e reparei na presença de um rapaz, dos seus 6 anos, agachado, concentradamente a olhar para debaixo do banco. Sem se importar com a minha observação, o rapaz levantou se, deu volta ao banco mas nunca levantou os olhos do chão.
Eu olhava para ele, mas mantinha-me em silêncio. 
A sua roupinha era pobre, mas estava limpa. Debaixo do olho havia uma pisadura, mas os próprios olhos deixaram-me sem palavras, eram olhos de uma pessoa adulta! Mas como? Uma criança não podia ter um olhar assim! No entanto, esse mesmo rapaz de 6 anos estava aqui ao meu lado, a olhar para o chão com esse mesmo olhar.
Acabando de fumar, tirei uma chiclet e pus na boca. A criança então finalmente olhou para mim mas rapidamente voltou a olhar para baixo do banco. 
 - Senhora, levante os seu pés por favor. - pediu ele.
Automaticamente fiz o que ele pediu, ele olhou para terra onde há segundos atrás estavam os meus pés e pronunciou desiludido:
 - Aqui também não há.
Para ele se animar perguntei:
 - Queres uma chiclet?
 - Qual é que tem? Eu gosto do sabor das frutas.
 - Desculpa, só tenho as de mentol.
Ele torceu o nariz pensando mas acabou por aceita-la.  
As suas mãos estavam muito sujas, eu sorri recordando-me na sua idade. Infância sem problemas a brincar na rua.
Nós olhávamos um para outro mastigando a chiclet. 
 - Hoje está um dia tão bom, não está? - comecei a conversa.
 - Sim, já não tem neve, é bom.
 - Não gostas de neve?
 - Gosto, mas debaixo dela não se vê nada. Bem, obrigado pela chiclet, eu tenho que ir, está a escurecer. - disse ele pondo as mãos nos bolsos. Virou-me as costas e começou a caminhar.
A minha curiosidade então gritou-lhe:
 - O que estás a procura?
Ele parou. Olhou para mim e antes de se virar totalmente perguntou:
 - Não dizes a ninguém?
 - Não, claro que não! É algum segredo?
 - Sim, é o meu segredo. - disse ele aproximando-se outra vez. 
 - Está bem, eu não digo nada a ninguém. -  disse eu sorrindo.
- Eu estou a procura de moedas. Aqui na rua as vezes encontra-se algumas. No ano passado encontrei muitas aqui, debaixo dos bancos.
 - Mas no ano passado também cá estiveste a procura?
- Sim.  - a cara da criança ficou muito séria.
 - Então e hoje já encontraste muitas?
- Já te mostro - disse ele tirando um pequeno pedaço de jornal em qual estava embrulhado algo. Ele ajoelhou-se e pós o papel desenrolado em cima do banco dando-me a conhecer as suas moedas. Ele começou a po-las uma a uma de novo no jornal mexendo os lábios, estava a conta-las. Lá não havia muito mais que 50 cêntimos, em pretos.
 - 18! - exclamou ele contente voltando a embrulhar e a guardar as moedas no bolso.
- Wow, já és rico! - sorri eu.
 - Não, é pouco. Muito pouco. Mas este ano vou encontrar muitas!

- Estas a procura de moedas para comprar guloseimas?
O rapaz ficou triste, baixou a cabeça e não me respondeu.
 - Talvez brinquedos? - tentei advinhar novamente.
Ele ficou ainda mais triste. Senti que tinha lhe perguntado algo que não devia. Que tinha tocado num assunto muito íntimo e bem escondido na alma desse pequeno homem.
- Está bem. Desculpa, eu não volto a insistir. Boa sorte na tua procura. Amanhã estarás por cá? - disse eu voltando a acender outro cigarro.
O rapaz olhou para mim com olhos tristes ainda e disse:
 - Sim, eu estou sempre cá, se não estiver a chover, claro.
E foi assim que começou a minha amizade com o Rodrigo. Todos os dias depois do trabalho eu sentava-me naquele banco, e todos os dias, quase a mesma hora chegava o Rodrigo, ajoelhava-se e juntos contávamos as moedas que ele tinha descoberto. Nem uma vez ele teve mais que 1€. Depois de 3 dias da nossa amizade eu propus: 
 - Rodrigo, eu tenho aqui uns pretos nos bolsos, queres ficar com eles?
- Assim não posso. A mãe disse que para ter dinheiro é preciso dar ou fazer algo em troca. Espera um bocado. - disse ele desaparecendo nos arbustos próximos do banco. Em poucos minutos ele voltou, estendendo a sua mãozinha:
- Vou te dar isso em troca das tuas moedas. - estava lá um pedaço de um lápis vermelho, papel de um rebuçado, e um caco de vidro azul, provavelmente de uma garrafa partida.
Assim realizou-se a nossa primeira troca.
Todos os dias eu trazia-lhe alguns trocos e voltava a casa com os bolsos cheios de tesouros representados por: rolhas de garrafas, clipes, isqueiros partidos, lápis sem bico, canetas que não escrevem. E ontem quase que fiquei rica! Por volta de 50 cêntimos eu recebi um pequeno carrinho partido e um soldado de chumbo. Eu nem quis aceitar por ser tão injusto. Mas o rapaz estava firme que nem betão.
Um dia ele recusou-se aceitar a troca comigo. E no próximo dia também. Todos os dias tentava saber o porquê de ele não querer os meus trocos, e só depois percebi que a criança deu-me todas as suas riquezas em troca dos meus "pretos". Então eu chegava mais cedo que ele ao nosso banco e punha para debaixo dele as moedas. O Rodrigo chegava e ficava contente por as encontrar, ajoelhava-se e contava.
Eu habituei-me a ele, eu comecei a amar esse pequeno homem. Apaixonei me pela sua inteligência, pelos esses olhos de um adulto, pela sua independência e persistência na procura de moedas. Mas cada dia que passava questionava-me mais: porquê já há 2 anos ele procura estas moedas? Mas não havia resposta.
Todos os dias eu chegava lá, e todos os dias trazia-lhe rebuçados ou chiclets de fruta, tal como ele gostava. Ele comia-os todo contente. E eu reparei num pormenor: ele raramente sorria.
Um certo dia a criança não apareceu. No dia seguinte também não. Nunca pensei que me iria preocupar tanto. Senti realmente a sua falta. Mas continuei a ir lá na esperança de o ver. E a minha esperança não morreu. Depois de 2 dias da sua ausência eu vi-o finalmente ao longe sentado no nosso banco. O meu coração quase que saltou de felicidade. Apressei o passo. E quando cheguei a beira dele o seu olhar direccionado para a terra não se mexeu. Sentei me ao seu lado:
- Então? Porquê não vieste? Não choveu. E debaixo do banco deve haver tantas moedas!
 - Eu não consegui chegar ao tempo, já não preciso de moedas. - disse ele com voz muito baixa. Baixei a minha cabeça para tentar olhar no seus olhos e seriamente perguntei:
 - Diz-me o que significa que não chegaste a tempo - ele não respondeu - pára de ser assim, eu trouxe aqui alguns trocos. - disse eu esticando a mão cheia de pretos. Ele afastou-a com força quase gritando:
 - Já disse, não preciso mais de moedas! - nunca pensei que uma criança de 6 anos podia ter tanta dor e desespero na voz. Fiquei ainda mais séria:
 - Rodrigo, conta-me, para quê precisavas das moedas?
 - Para o meu pai, eu precisava de moedas para o meu pai. - Disse ele começando a chorar compulsivamente. Eu senti um arrepio gigante e com medo perguntei:
 - Para quê o teu pai precisava delas?
As suas lágrimas pingavam tanto que os joelhos ficaram rapidamente molhados. Ele controlou-se e aos soluços respondeu:
 - A sra. Helena diz que o meu pai bebe muito álcool. Mas a minha mãe disse que ele só estava doente, mas que não havia dinheiro para o curar, porque era preciso muito dinheiro, muito dinheiro....e eu procurava dinheiro para ele, mas não consegui chegar a tempo.
Abrasei-o e comecei a chorar sem saber o que dizer, e ele continuou:
 - Ele não acordou. Simplesmente não acordou. Ele morreu. O meu pai morreu. Ele não está cá. Ele é muito bom. Ele é o melhor pai do mundo! E eu não consegui chegar a tempo, não conseguir chegar a tempo... - repetia ele voltando a chorar cada vez mais. Mas de repente ele soltou-se de mim. Saltou do banco. Limpou as lágrimas com os seus punhos pequeninos e disse me com voz firme:
- Obrigada pelas tuas moedas. És a minha amiga. - virou-me bruscamente as costas e correu pela estrada fora.
Eu olhava para o chão e não parava de chorar. Eu só pensava no pequeno homem Rodrigo com qual a vida jogou um jogo tão cruel logo no início da sua existência. Eu chorava percebendo que não lhe vou poder ajudar, nunca mais.
Eu continuava todos os dias depois de trabalho passar pelo nosso banco mas nunca o voltei a ver. Até agora ainda passo por lá, menos vezes, mas passo, e atiro sempre uma moeda preta para debaixo do banco. Porque eu sou sua amiga, quero que ele saiba que eu estou por perto.